A relação entre as forças de poder na sociedade e os indivíduos, principalmente quando se fala em poder constituído, formal, como é o caso do Estado, sempre foi objeto de calorosas discussões, pois ao longo do tempo foi se modificando e apresentando distintas características. E não está sendo diferente nessa Reforma da Previdência.
Inicialmente, o poder tinha viés absoluto e concentrado, livre de limitações ou freios que o pudessem controlar em casos de excessos, abusos. Grosso modo, era o perfil do que se chamava de Estado de Polícia. Felizmente, avançamos no desenvolvimento de estruturas, paradigmas até que fosse possível controlar, fiscalizar a atividade de quem detém o poder político.
Sai então a perspectiva do indivíduo como mero súdito de algum soberano e entre a perspectiva de um cidadão, destinatário da atividade estatal, que passa a ser limitada pela lei: fala-se, assim, em Estado de Direito. Porém, mais do que isso, foi possível estabelecer um paradigma do modelo de Estado que retirasse a legitimidade de seu poder diretamente dos indivíduos, denominado de Estado Democrático de Direito.
Como a transição da Reforma da Previdência pode ser atenuada?
Essa evolução de paradigmas do Estado teve severo impacto em sua forma de atuação, merecendo destaque a exigência de que haja segurança em seus passos, de tal forma que não surpreenda os cidadãos que depositam legítima expectativa e planejam suas vidas de acordo com as regras vigentes, postas.
Essa necessidade de se repelir mudanças abruptas, drásticas, que surpreendam as expectativas dos cidadãos, deriva de um subprincípio do paradigma do Estado de Direito: a segurança jurídica. Todos os agentes públicos, em suas mais variadas atividades, devem atuar de maneira a evitar ao máximo mudanças súbitas nas esferas jurídicas dos cidadãos.
Segurança jurídica, nessa acepção, consiste em uma exigência do Estado Democrático de Direito, em manter um ordenamento jurídico que seja previsível, estável e que busque a preservação das situações jurídicas em curso durante eventual mudança.
A questão da previsibilidade significa poder antever com um mínimo grau de certeza quais são os efeitos das posições jurídicas tomadas pelos cidadãos em determinada sociedade. Noutro giro, fala-se em estabilidade pois as constantes mudanças na legislação igualmente atrapalham o planejamento dos indivíduos, porquanto se conclui que são exigências bastantes próximas.
Mudanças na sociedade e seus reflexos
Inexoravelmente acontecerão mudanças na sociedade que causarão a necessidade de alterações legislativas. A História do Brasil fala por si só: já tivemos 7 (sete) Constituições, sendo que a última, promulgada em 1988 e ainda vigente, já sofreu quase 100 (cem) emendas!
O Direito Previdenciário, por excelência, sempre está em constante processo de transformação, pois é reflexo do que acontece na sociedade: economia, emprego, idade, taxa de natalidade, taxa de mortalidade, dentre outras variáveis são subsídios para que o legislador elabore um plano de custeio e de benefícios do sistema securitário.
Ora, se é certo que essas variáveis oscilam a todo momento, principalmente no Direito Previdenciário, não é de se espantar que a lei, instrumento muito menos dinâmico, não consiga acompanhá-las em sua plenitude, razão pela qual se fazem necessárias novas e novas edições normativas.
Por essa razão, um Estado Democrático de Direito não deve apenas primar por um ordenamento jurídico previsível e estável, mas também deve garantir segurança jurídica àqueles cidadãos que forem afetados com as mudanças, que não tiveram as suas situações consumadas, porquanto estavam em curso quando aconteceu a transição.
Regras de transição
É nesse exato sentido que se construiu a ideia de uma regra de transição, instrumento que tem por objetivo suavizar as mudanças drásticas, abruptas, consistindo em um meio-termo entre a situação anterior e a nova. Como nos ensina Canotilho:
A aplicação das leis não se reconduz, de forma radical, a esquemas dicotômicos de estabilidade/novidade. Por outras palavras: entre a permanência indefinida da disciplina jurídica existente e a aplicação incondicionada da nova normação, existem soluções de compromisso plasmadas em normas ou disposições transitórias1.
Toda essa elaboração cuidadosa de regras existe para conferir o que alguns juristas denominam de estabilidade na mudança, como é o caso do ilustre Humberto Ávila:
Pode-se compreender a segurança jurídica como exigência de estabilidade na mudança, isto é, como a proteção de situações subjetivas já garantidas individualmente e a exigência de continuidade do ordenamento jurídico por meio de regras de transição e de cláusulas de equidade [2].
No Brasil, na seara previdenciária, graves alterações já aconteceram e, diante disso, o legislador editou regras de transição. A título de exemplo, houve o pedágio para os segurados que quisessem se aposentar proporcionalmente ao seu tempo de contribuição, que aconteceu com a Emenda Constitucional 20/1998. Além dele, cita-se o art. 3º da Lei nº 9.876/1999, que ao alterar o conceito de salário-de-benefício, limitou o alcance do período básico de cálculo a julho de 1994.
O que diz a PEC 287/16
A PEC 287/16, que promove a Reforma da Previdência, também traz regras de transição, exatamente porque configura-se como uma mudança bastante abrupta, repentina e que “pega de surpresa” quem já planejava se aposentar. Os detalhes dessas regras, contudo, transbordam os limites do presente artigo e serão analisados detidamente em nossa próxima oportunidade!
1 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª. Ed. Coimbra: Almedina, 1999. P. 263.
2 AVILA, Humberto. Segurança Jurídica: entre permanência, mudança e realização no Direito Tributário. 2ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2012. P. 130.
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