O sistema penitenciário brasileiro sofre há muito tempo pela falta de efetivas políticas públicas que promovam o cumprimento das penas, bem como os direitos dos detentos. O descaso do Poder Público em efetivar o adequado cumprimento da pena, com profissionais devidamente treinados para atuar com a população carcerária e através de estabelecimentos prisionais bem estruturados, é explícito em nosso país e, destacadamente, na capital do Rio Grande do Sul.
No ano de 2014 recebi a visita de um parente da família de minha esposa, Jehns Ulrichs, alemão, residente e domiciliado na cidade de Hamburgo na Alemanha. Durante um churrasco, que é a forma pela qual nós gaúchos fazemos questão de recepcionar nossos convidados, conversamos sobre diversos assuntos. Por ser ele um professor universitário, e eu acadêmico do curso de direito, conversamos sobre a questão de prestações de serviços públicos e também sobre empresas privadas e concessionárias em ambos os países, Brasil e Alemanha. Eis que surgiu a questão do sistema penal e prisional. Jehns ficou literalmente boquiaberto quando relatei a ele a situação atual dos nossos presídios bem como o que estava ocorrendo com a questão do regime semiaberto na cidade de Porto Alegre. Jehns achou um absurdo e falou que eu estava de brincadeira com ele.
Eu nunca havia estudado de fato o que estava acontecendo em nossa comarca, e em várias cidades do país, apenas sabia o que a mídia relatava e alguns comentários no meio acadêmico. Não sabendo naquela época ao certo qual seria o tema do meu trabalho de conclusão de curso, tal assunto despertou minha curiosidade e, em conversa com o professor na fase de projeto de pesquisa, recebi incentivo para aprofundar estudo sobre o tema.
É sabido que o Estado Democrático de Direito se caracteriza não só pela previsão de direitos e garantias constitucionais, mas também pela permanente busca da efetivação dos mesmos. Na esfera penal, faz-se necessária tal busca antes e depois da sentença condenatória irrecorrível. Com efeito, no que tange ao tratamento do sistema carcerário, percebe-se que urge a necessidade de perfeita interação entre dois Poderes da República, o Judiciário e o Executivo. Como ocorre em outras áreas da vida social, na falta de atuação efetiva do Executivo na garantia dos direitos fundamentais, necessita-se que o Judiciário intervenha na defesa dos presos e da sociedade garantindo prerrogativas elencadas na Constituição Federal.
A falência da política criminal e do modelo punitivo de nossa pátria não podem ser fundamentos para a continuidade de violações a direitos constitucionalmente garantidos. Diante de tal cenário, questionam-se quais são os reflexos sociais, qual é o real papel da pena, inserida no contexto do Direito e como fato social, e qual é o resultado que se espera ao punir.
A cultura opressiva e de criminalização descontrolada de condutas que vivemos não têm gerado os resultados pretendidos. A Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio Grande do Sul informa estatística assustadora através da Superintendência dos Serviços Penitenciários (SUSEPE), confirmada em relatório do dia 08 de abril de 2016[1], de mais de 69% de reincidência criminosa no estado, percentual este que apontava 23.280 presos que não estavam lá pela primeira vez.
Nessa condição de ineficiência e desrespeito aos direitos em que o sistema carcerário vive atualmente, verificam-se problemas cada vez mais sérios no que tange à execução das penas, não só na comarca de Porto Alegre/RS, como em todo o território Nacional. Hoje não é uma questão só jurídica: é uma questão política e social. Toda a sociedade está sofrendo os efeitos, passando por uma série de obstáculos por causa do atual funcionamento do sistema penal. Tal tema poderia, antes, interessar a apenas algumas pessoas ou aqueles que trabalham na segurança pública. Entretanto, hoje vêm ao encontro de todos nós da sociedade, todos preocupados com a segurança pública do nosso meio social.
O fato é que a precariedade e a falta de estabelecimentos prisionais em nosso país contribuem para que a Lei nº 7.210/84, Lei de Execucoes Penais, não venha a ser cumprida na sua efetividade, aliás no meu entendimento nunca foi. Quando o legislador originário criou as fases da execução penal não foi sem propósito, portanto estas também devem ser devidamente consideradas pela perspectiva constitucional. Afinal, assim como o acusado – no processo de conhecimento – é acobertado por várias e essenciais garantias decorrentes do devido processo legal, ao condenado – durante a execução penal – também são assegurados direitos indisponíveis pela Constituição Federal[2] em seu artigo 5º, a exemplo da individualização da pena (inciso XLVI), do cumprimento em estabelecimento adequado (inciso XLVIII) e do respeito à integridade física e moral (inciso XLIX), abarcados pelo princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, III).
Também é assegurada ao preso, quando cumpridos os requisitos legais, a progressão de regime, com vistas à concretização do objetivo previsto no art. 1º da Lei nº 7.210/84[3] de proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado. No entanto, a falta de estrutura oferecida pelo Estado impossibilita a observância dos preceitos referentes ao sistema progressivo, não só pela falta de vagas nos estabelecimentos penais, como pela própria inexistência desses estabelecimentos em número suficiente. Dessa forma, apesar de preenchidos os requisitos para a progressão, muitas vezes o executado aguarda o surgimento de vagas, por longos períodos, em regime mais rigoroso do que o determinado pela decisão concessiva do benefício. Surge então a questão de tal fato configurar ou não constrangimento ilegal e da possibilidade de o preso aguardar a vaga em regime mais brando.
É justo evidenciar a inconstitucionalidade da manutenção do preso em regime fechado, ou equivalente, quando a sentença condenatória determina cumprimento em regime semiaberto. Com efeito, por vezes o magistrado vê-se na situação em que a falha do Poder Executivo em prover à sociedade estabelecimentos prisionais adequados ao cumprimento de pena em regimes semiabertos (colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar) e aberto (casa de albergado ou estabelecimento adequado), tal como preleciona o artigo 33 do Código Penal[4] (CP), prejudica o direito do apenado de progredir no cumprimento de sua pena. De fato, a falha do Poder Público, especialmente na comarca de Porto Alegre no estado do Rio Grande do Sul, não embasa a manutenção de preso em regime mais gravoso, pelo contrário, quando não há vaga no regime semiaberto, o condenado cumpre pena no regime aberto e, na falta desse, em prisão domiciliar com ou sem tornozeleira eletrônica[5]. Dessa forma, seguindo entendimento dos Tribunais Superiores, não se mantém, em tese, o apenado em regime mais gravoso.
Todavia, quando ocorre tal progressão esse tipo de situação pode não ser a melhor solução na medida em que frustra a intenção da ressocialização gradativa concebida pelo legislador e pode colocar em risco toda a sociedade ao reintegrar um condenado que não cumpriu as etapas para sua reinserção no convívio social.
Originalmente, as penas foram criadas para serem cumpridas na sua integralidade, sem alterações. É notório pelas informações que afloram nos meios de comunicação, bem como conhecido por todos os estudiosos do Direito, que a população carcerária brasileira é uma das maiores existentes no mundo, tornando-se inegáveis os problemas em um justo respeito ao controle legal. A execução penal em nosso país é uma das áreas em que a realidade mais se distancia da letra da lei.
A falta de planejamento político do Estado é um dos fatores que mais contribui para o “caos” do sistema carcerário nacional, pois prejudica não só o detento, que não tem condições dignas para cumprir sua pena, como a sociedade, que fica cada vez mais vulnerável aos criminosos.
É importante enfatizar que existem inúmeros trabalhos que tratam sobre o regime prisional brasileiro, as condições as quais os presos se encontram em nosso país e também com relação à superlotação carcerária.
Ocorre que vem crescendo o número de falta de vagas nos estabelecimentos prisionais, principalmente na comarca de Porto Alegre/RS. Não é raro vermos notícias e vídeos, circulando nas redes sociais, de indivíduos cumprindo prisão cautelar em viaturas da polícia, um verdadeiro descaso com a vida humana, o que por consequência faz com que os magistrados, na fase da execução penal, determinem que o apenado, cuja pena deveria ser cumprida inicialmente em regime semiaberto, ou aqueles que gozam da progressão de regime (do fechado para o semiaberto), passe a cumprir em regime mais benéfico, com fundamentação em princípios constitucionais inerentes à pessoa humana. Entretanto, tal medida pode ser vista pela sociedade como uma forma de impunidade.
Inexistindo vagas os condenados têm que cumprir pena em regime alternativo, ou mais rigoroso ou mais brando. Colocá-los em regime mais rigoroso seria inconstitucional, violando assim seus direitos. Enquanto que aguardar em regime mais brando seria um benefício dado para os que esperam por vaga. A discussão é, portanto, como lidar com os presos que aguardam por vagas de uma forma mais adequada.
Em conversa com um magistrado da execução penal, levantei a questão fazendo uma analogia com a judicialização da saúde. Se não seria o caso de o Poder Judiciário intervir no Poder Executivo, obrigando o mesmo a construir as vagas necessárias, como ocorre com medicamentos. Para minha surpresa descobri que o estado do Rio Grande do Sul, já foi condenado a construir vagas, e que tal condenação também teve recurso e também foi dada repercussão geral. A decisão de primeiro grau foi dada na 7ª Vara da Fazenda Pública do Foro Central, no Processo nº: 001/1.07.0283822-9, no dia 06 de fevereiro de 2009. Existe, inclusive, a possibilidade de sequestro, de valores. O que se sabe é que a multa que já correu contra o Estado seria uma multa astronômica, mas não adiantaria determinar o sequestro porque as contas do Estados estão raspadas. Ou seja, não se consegue nada com o sequestro, praticamente impossível de executar.
O Supremo Tribunal Federal (STF) já se manifestou no sentido de que a ineficiência ou morosidade do Estado na construção de vagas não serve de argumento para infringir direitos subjetivos constantes no Código Penal, no Código de Processo Penal e na Lei de Execução Penal.
Considerando que a decisão ofende o princípio da individualização da pena, na medida em que gera uma padronização das penas e iguala os desiguais, pode-se verificar que o regime aberto pode vir a ser decretado de forma genérica e abstrata, sem a devida análise das particularidades de cada caso. Igualmente, dessa forma, a consequência prática do benefício judicial é a conversão da condenação imposta pela sociedade brasileira por meio do Judiciário em mera censura moral. Isso porque dificilmente existirá uma efetiva fiscalização por parte do Estado para verificar se a prisão domiciliar está sendo cumprida. Diante disso, passa a ser apenas uma recomendação para que o condenado permaneça em casa.
Nesse sentido, eclode a preocupação de que a adoção generalizada, massificada e descontrolada da prisão domiciliar como medida substitutiva dos regimes aberto e semiaberto pode ocasionar reflexos sociais
A falta de estabelecimento penal compatível com a sentença não autoriza a manutenção do condenado em regime prisional mais gravoso, esse foi o entendimento do Plenário do Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 641320, no dia 11 de maio de 2016, com repercussão geral reconhecida. Por maioria de votos, os ministros entenderam que o condenado deve cumprir pena em regime menos gravoso diante da impossibilidade de o Estado fornecer vagas em regime originalmente estabelecido na condenação penal.
É verdade que o Estado, bem como o município, ganharia se gastasse mais com educação. Mas não é verdade que devamos depreciar os gastos com o sistema penal porque essa atitude impede o respeito do Estado à Lei de Execução Penal. Um Estado que desrespeita a lei comete crime. Em o fazendo, estimula a violência dos presos.
Quando o Estado não é capaz de assegurar o encarceramento dos indivíduos, é natural que ocasione uma sensação de insegurança na sociedade, bem como o sentimento de impunidade para os criminosos. O perigo é que tais problemas podem acarretar em um colapso do sistema como um todo. Não é raro hoje em dia vermos notícias de cidadãos fazendo justiça com as próprias mãos.
Assim, quando o Estado, por sua função jurisdicional, aplica medidas amenizadoras, como a Prisão Albergue Domiciliar, para sustentar possíveis falhas do sistema carcerário atual, garantindo ao condenado a proteção de seus direitos, de modo que este não seja punido por falha do próprio Estado, todavia, viola o direito da segurança pública garantida pela Constituição Federal.
Destarte, é justo enfatizar, que a sociedade e muito menos os apenados, tem culpa pela falência do sistema carcerário Brasileiro. Cabe aos advogados criminalistas intercederem pelo direito vigente em nosso estado, que se diz democrático de direito, em prol a uma pena digna e em conformidade com a legislação aos encarcerados, lembrando que, não se defende o crime, mas sim a liberdade e a dignidade do ser humano.
Por fim, destaca-se que os governantes são os mais criticados, pois o descaso com a segurança pública gera ainda mais revolta da sociedade.
Todo este cenário nos leva a questionar a validade da atual estrutura de nosso sistema prisional, pois ele não favorece nem a sociedade como um todo e, muito menos a população carcerária que não possui condições mínimas de dignidade. Frente a estes fatos, fica a reflexão já proposta pelo polímata brasileiro Ruy Barbosa: “A justiça atrasada não é justiça; senão injustiça qualificada e manifesta”.
[1] Disponível em: http://www.susepe.rs.gov.br/conteudo.php?cod_menu=39
[2] Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988.
[3] Lei 7.210 de 11 de julho de 1984, Lei de Execução Penal.
[4] Art. 33, § 1º – Considera-se: a) regime fechado a execução da pena em estabelecimento de segurança máxima ou média; b) regime semiaberto a execução da pena em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar; c) regime aberto a execução da pena em casa de albergado ou estabelecimento adequado.
[5] Hardware e software com o objetivo de possibilitar o monitoramento de sentenciados ou presos provisórios mediante integração de tecnologias de rastreamento. O dispositivo é conhecido popularmente como tornozeleira eletrônica, uma vez que é fixado na perna do usuário. A tornozeleira informa a posição do monitorado por meio de GPS para uma central de monitoramento, utilizando os serviços de telefonia móvel. Por meio de software de monitoramento, é possível acompanhar todas as movimentações de cada monitorado.
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