m decisões recentes que reinterpretam de forma radical estruturas constitucionais, como a execução provisória em 2ª instância, o Supremo tem sido criticado, por vários de seus próprios ministros, por um ativismo excessivo. Nessa visão, essas decisões representam reformas que seus ministros talvez aprovassem se fossem legisladores, mas que não são compatíveis com o texto constitucional. No caso da decisão sobre o foro privilegiado, essa crítica apareceu novamente, sobretudo entre os votos vencidos. Curiosamente, porém, os ministros se dividiram sobre qual deveria ser a reforma no sistema a ser adotada – mas não quanto à necessidade e à possibilidade, em si, de fazerem alguma reforma no sistema por interpretação, sem esperar alguma mudança legislativa.
Não foi a primeira vez que o Supremo reformulou, por interpretação, o escopo do foro privilegiado no tribunal. Em 1999, por exemplo, em reação a uma série de denúncias contra ex-parlamentares, o Supremo cancelou por unanimidade sua súmula que ampliava o foro privilegiado até para quem já tivesse saído do cargo. De forma mais geral, a nova decisão é mais um de diversos ajustes que o tribunal faz, de tempos em tempos, na gestão de seus próprios processos. Pode ser vista como mais um exemplo da “jurisprudência defensiva” que o tribunal construiu, nos anos 90, para restringir suas portas de acesso, com a motivação explícita de lidar com o volume de processos recebidos.
Na decisão de agora, mesmo quem levantou a crítica de ativismo acabou propondo algum tipo de restrição ao foro. As principais divergências, portanto, foram pragmáticas: como restringir? Como observou Joaquim Falcão, os ministros talvez tivessem em mente consequências diferentes, de curto ou de longo prazo. No mesmo sentido, as reações à decisão do Supremo podem ser divididas, também quanto às consequências, entre otimistas e pessimistas. Cada perspectiva encara os efeitos da decisão de maneira distinta.
Os otimistas começariam celebrando o encerramento de uma política processual “aristocrática”, na expressão do ministro Celso de Mello. A decisão estaria promovendo a igualdade, sem realmente esvaziar as garantias da função parlamentar. Afinal, os parlamentares ainda contarão com o foro privilegiado para os crimes que tiverem conexão com o exercício do papel legislativo.
Quanto às consequências da decisão, apostam que em um duplo impacto positivo: de um lado, ela ajudará a desafogar o Supremo. De outro, agilizará o andamento de investigações e ações penais contra políticos. Mais ainda, para muitos otimistas, essa decisão deve ser lida em conjunto com a execução provisória da pena como um movimento geral contra a impunidade seletiva.
Os pessimistas, por sua vez, não necessariamente negam os benefícios acima, mas apontam para efeitos perversos da decisão. Suas expectativas negativas se embasam em dois temores. Primeiro, a potencial influência de deputados e senadores nos tribunais de justiça locais.
Segundo, o risco de que candidatos e políticos sejam perseguidos por juízes e promotores, que, segundo os pessimistas, nem sempre são neutros nas disputas políticas locais. Um político poderia ser combalido pela simples combinação de uma solitária denúncia e uma solitária decisão judicial, logo na primeira instância.
O problema é que as expectativas positivas e negativas não se anulam. Otimistas e pessimistas não têm respostas diretas aos riscos e vantagens que o outro lado aponta. Apenas dão pesos diferentes a consequências e possibilidades que, no fundo, todos identificam no cenário de implementação da decisão.
Na intersecção desses dois conjuntos de expectativas empíricas, encontramos uma série de perguntas ainda sem resposta. Por exemplo, podem juízes de primeira instância impor quaisquer medidas cautelares a qualquer autoridade, ou autorizar quebra de sigilo?
São apenas algumas das perguntas que o Supremo já começa a enfrentar. Nesta terça-feira, a Segunda Turma do STF decidiu que manterá no tribunal os processos contra parlamentares que se reelegerem. E os ministros terão que enfrentar as outras dúvidas daqui em diante, provavelmente em decisões em casos concretos, e com a possibilidade sempre presente de que as duas turmas adotem posições distintas e até conflitantes.
Apesar dessas incertezas, porém, e apesar das críticas internas de ativismo, o tribunal foi unânime quanto à necessidade de se fazer alguma reforma, por interpretação, no escopo do foro privilegiado. O fato é que, implícita ou explicitamente, onze ministros consideraram o sistema atual insustentável.
O tribunal vinha fazendo suas contas – e sua análise da conjuntura. O custo para julgar parlamentares era alto, como demonstrou a Operação Lava Jato. Um senador foi preso, outro removido preventivamente do mandato, os presidentes da Câmara e do Senado foram alvos de decisões de afastamento – com sucesso, no caso Eduardo Cunha. Em todas essas decisões, houve reações. E, diante de ao menos duas dessas reações, o Supremo piscou.
Além disso, há um custo operacional a pagar. Um foro expansivo força o Supremo a se desviar ainda mais da discussão de teses sobre a constituição, e até mesmo dos recursos de massa, para se tornar um tribunal criminal – tarefa difícil, para a qual a estrutura da instituição e seus ministros não foram necessariamente vocacionados. Os ministros fazem essas contas e esse diagnóstico com pesos diferentes, mas todos parecem concordar que, de alguma forma, por variados motivos, a conta não está fechando.
O modelo foi alterado. Começamos um novo percurso. Certamente serão necessárias correções de rumo mais à frente. O sistema é complexo demais para ser solucionado por uma questão de ordem. Todos os ministros sabem disso. Como é natural com qualquer mudança dessa magnitude, há muito o que entender, avaliar e definir no novo regime. Mas – e aqui a unanimidade do tribunal é clara – a incerteza gerada pela mudança não justificaria o imobilismo diante de um sistema que sabemos estar quebrado.
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