Tão reprovável quanto o abuso cometido pelo sócio ou administrador de uma empresa é o abuso praticado pelo Judiciário. Em outras palavras, não se vislumbra mais justiça numa decisão judicial quando ela se afasta do texto legal.
Quando as pessoas resolvem constituir uma empresa elas o fazem por diversos motivos, sendo que um dos mais importantes é a separação do seu patrimônio pessoal daquele da empresa. O sujeito pode ter um capital disponível que pretende investir num empreendimento, mas, em vista dos riscos inerentes a qualquer negócio, não deseja aplicar na empresa tudo o que já conquistou ao longo da vida.
As modalidades de constituição de sociedades empresárias estão juridicamente estabelecidas pelo Código Civil, em seus artigos 1.039 a 1.092”. E dentre os tipos societários, encontra-se a mais comum, que é a sociedade limitada (arts. 1.052 a 1.087), pela qual a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas de capital social, pelas dívidas contraídas pela empresa perante os seus credores.
Pontua Fábio Ulhoa Coelho:
“Da personalização das sociedades empresárias decorre o princípio da autonomia patrimonial, que é um dos elementos fundamentais do direito societário. Em razão desse princípio, os sócios não respondem, em regra pelas obrigações da sociedade”. (p. 16)
A personalização da sociedade limitada implica a separação patrimonial entre a pessoa jurídica e seus membros. Sócio e sociedade são sujeitos distintos, com seus próprios direitos e deveres. As obrigações de um, portanto, não se podem imputar ao outro. Desse modo, a regra é a da irresponsabilidade dos sócios da sociedade limitada pelas dívidas sociais. Isto é, os sócios respondem apenas pelo valor das quotas com que se comprometeram, no contrato social (CC, art. 1.052). É esse o limite de sua responsabilidade”. (COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. São Paulo: Saraiva, 2010. 2 v., p. 413)
Almeja o Direito Empresarial visa garantir ao empresário que, operando sob essa modalidade empresarial, se as coisas derem errado com a empresa, ele possa manter reservado os bens pessoais ou particulares, isentos do prejuízo alcançado pela sociedade empresária e, dessa forma, incentiva as pessoas a empreenderem, haja vista a importância na economia e a função social que as empresas têm.
“A partir da afirmação do postulado jurídico de que o patrimônio dos sócios não responde por dívidas da sociedade, motivam-se investidores e empreendedores a aplicar dinheiro em atividades econômicas de maior envergadura e risco. Se não existisse o princípio da separação patrimonial, os insucessos na exploração da empresa poderiam significar a perda de todos os bens particulares dos sócios, amealhados ao longo do trabalho de uma vida ou mesmo de gerações, e, nesse quadro, menos pessoas se sentiriam estimuladas a desenvolver novas atividades empresariais. No final, o potencial econômico do País não estaria eficientemente otimizado, e as pessoas em geral ficariam prejudicadas, tendo menos acesso a bens e serviços.” (COELHO, 2010, p. 16)
Ocorre que, violentando tudo isso, surge o instituto da desconsideração da personalidade jurídica que, em certos casos, autorizado indevidamente por decisão judicial, rompe a proteção do patrimônio pessoal do sócio.
A teoria citada, embora sejam encontrados resquícios seus no Direito Romano, teve sua gênese na Inglaterra e, das suas repercussões, deu origem à doutrina da Disregard of legal entity principalmente evocada nos Estados Unidos. Já no Brasil, atribui-se ao Prof. Rubens Requião tê-la abordado como precursor numa conferência intitulada “Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica”, realizada na Universidade Federal do Paraná em 1969.
Mas o que ensejou a origem e a manteve a desconsideração da personalidade jurídica como um instituto presente no universo jurídico foi o desvirtuamento do instituto da pessoa jurídica, provocado quando o sócio ou o empresário procede com fraude ou abuso de direito, cometidos por meio da personalidade da sociedade.
É bem verdade que o referido instituto encontra previsão legal tanto no Código Civil, quanto no Código do Consumidor e, mais remotamente, no art. 4º da Lei nº 9.605/98 (que dispõe sobre as atividades lesivas ao meio ambiente). Não é o propósito desta reflexão dissertar sobre as hipóteses de cabimento da desconsideração da personalidade jurídica (desvio de finalidade, confusão patrimonial, fraude contra consumidores e tantas outras, tão amplamente difundidas pela doutrina e jurisprudência), mas tão somente apontar que a desconsideração da personalidade jurídica deve ter natureza excepcional, pois não se justifica o afastamento da autonomia patrimonial simplesmente toda vez que um credor não conseguir satisfazer o seu crédito; sendo mister que tenha havido indevida utilização da pessoa jurídica ou fragrante ocorrência das hipóteses que a autorizam.
Observa-se, a título exemplificativo (e não taxativo), principalmente nas decisões do âmbito da Justiça do Trabalho uma verdadeira práxis jurídica de decretar a desconsideração indiscriminadamente, toda vez que não se encontra patrimônio suficiente na empresa para quitar os débitos com seus empregados e até com os impostos relacionados aos vínculos de emprego (INSS, IR, etc.). Parece estar arraigada na seara trabalhista uma construção jurisprudencial tendenciosa a superproteger o trabalhador em detrimento da autonomia e da limitação de responsabilidade igualmente albergados pelo Direito em proteção do sócio, do empresário e do fomento ao desenvolvimento social e econômico do país.
Em alguns foros, chega-se ao absurdo de mencionar, de ofício, logo no despacho de intimação para pagamento da execução trabalhista, que a empresa reclamada deve cumprir a sentença condenatória sob pena de, por isso só, ser desconsiderada a sua personalidade jurídica.
Esse tipo de decisão judicial configura, inclusive, um ato que extrapola o poder do Judiciário, haja vista que, em homenagem à teoria da tripartição dos poderes (de Montesquieu), não cabe ao juiz decidir ultra legis.
Ainda que, apesar das divergências, possa ser considerado o crédito trabalhista privilegiado ao ponto de justificar o sacrifício do Direito Empresarial, incumbiria ao legislador aprovar norma específica para isso, o que, em verdade, ainda não existe. Como dito alhures, as decisões trabalhistas são embasadas apenas em entendimento jurisprudencial consolidado que aplica, por analogia, a parte da legislação civil e consumerista que lhe serve para sustentar a tese, mas ignora (indevidamente) a parte condicional da mesma legislação.
No processo do trabalho, algumas decisões judiciais invocam, quando se comprova a relação de emprego, por analogia o artigo 28, § 5º do CDC, cujo fundamento está no Princípio da Igualdade Substancial, que é base, tanto da CLT quanto do CDC, pelo qual se deve aplicar uma norma jurídica protetiva a uma parte, em função da sua hipossuficiência existente no plano dos fatos, pois se presume que o empregado é hipossuficiente frente ao empregador, como o consumidor o é em relação ao fornecedor.
CDC. Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
Já quando não se constata vínculo empregatício, mas sim prestação de serviço (ex.: trabalhador avulso ou autônomo), adota-se o art. 50, CC e 28, CDC.
Código Civil. Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.
Mas ictu oculi que, ambos os dispositivos, só autorizam a desconsideração em determinadas situações e não simplesmente em face da insuficiência patrimonial ou inadimplência da dívida trabalhista.
Já uma outra corrente adota a Teoria do Risco da Atividade Econômica, entendendo que o trabalho do empregado é que gera o lucro da empresa e, por consequência, o empresário se beneficia desse resultado enquanto o trabalhador apenas recebe a remuneração pelo serviço (e não o lucro); por isso, eventual prejuízo do empreendimento deve ser suportado por ele. Assim, no Direito do Trabalho, por força do próprio artigo 2º da CLT, o empregador assume o risco da atividade econômica, não podendo transferi-la ao empregado.
CLT. Art. 2º – Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço.
Consoante tal entendimento, sendo caracterizada a insolvência da empresa no processo do trabalho, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica pode ser aplicada mesmo que não tenha ocorrido desvio de finalidade e ainda que a pessoa jurídica tenha sido utilizada nos termos da lei. Isto simplesmente porque, no caso de insolvência, se não fosse aplicável a desconsideração da personalidade jurídica, o empregador teria o seu patrimônio pessoal protegido enquanto o empregado ficaria no prejuízo, diante do não recebimento da contraprestação pelo trabalho que ele já realizou. Desse ponto de vista, ocorreria uma inversão da Teoria do Risco da Atividade Econômica, já que o empregado é que suportaria os riscos da atividade.
Mas é evidente que, mesmo sob o enfoque dessa teoria, inexiste norma específica para sustenta-la pois, como se observa, o artigo 2º da CLT não é suficiente.
Logo, qualquer que seja a opção do julgador trabalhista, ela provém muito mais de uma construção jurisprudencial do que de um comando legal, enquanto, por outro lado, a proteção do patrimônio do empresário é absoluta e expressamente prevista na lei, incólume de dúvidas.
Importa reconhecer, portanto, que, se decretada a desconsideração pela simples inadimplência ou pela só insuficiência patrimonial da pessoa jurídica, sem real subsunção do caso concreto a uma das hipóteses que a autorizam, a decisão representará um golpe letal ao Direito Empresarial, fulminando a legalidade do que ele pretendia agasalhar.
Fonte : Jus Brasil
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